quinta-feira, 22 de outubro de 2009

CARTA A JACQUES BREL (3)

Carta a Jacques Brel (continuação)

Fazes-nos falta, Jacques Brel. Por isso queremos manter-te vivo a cantar as tuas canções. Tu próprio o disseste: “A canção é um acto de amor, um acto de ternura”.
Fazes-nos falta, porque andamos carenciados de sonho, de amor e de ternura.
Em vez disso, andamos para aqui, em banho-maria, a viver a vida pardacenta, entre o silêncio e a solidão. À espera de alguma coisa que nunca acontece. À espera de um aumento de ordenado e à espera de D. Sebastião no dorso de uma baleia. À espera de ver Deus na televisão e à espera das bem-aventuranças da União Europeia... Ou “aguardando um raiozinho de socialismo”, como escreveu, aqui há uns anos, o poeta Marcolino Candeias.
Ah, e se tu soubesses o que, musicalmente, por cá se passa... Se eu te falasse no “marketing” discográfico, no individualismo desenfreado, na ganância do lucro, tu não acreditarias. Se eu te dissesse que a música agora também serve para encher chouriços, ou que a qualidade deixou de interessar, ou que a maior parte dos cantores de hoje canta fora de tom, tu certamente mandavas-me passear. Se eu te referisse que a cultura deixou de ser um acto de espírito e de imaginação humana. Se eu te falasse da música “light” que por aí anda à solta... Ah, como ficarias desgostoso se soubesses que hoje, a nível planetário, andamos culturalmente colonizados pelos americanos e por outros imbecis contentinhos...
Quando cá estiveste, há 35 anos, a revolução de Abril ainda estava na rua. Chegámos a acreditar em manhãs radiosas, porque “foi bonita a festa, pá”, como cantou, do outro lado do mar, o nosso amigo Chico. Mas hoje, meu caro, vivemos de resignações televisivas e de outros futebóis e só queremos que “não nos falte o dinheiro para o bife”... (Lembras-te do Zeca Afonso?).
“Em Portugal o mal é ancestral”, escreveu um poeta português que muito te admirou e até copiou alguns dos teus versos: José Carlos Ary dos Santos. E houve até um cantor que, durante algum tempo, pretendeu ser o Brel português: Fernando Tordo… Mas a tua voz sempre foi única, exclusiva, inimitável.
(continua)

Horta (anos 60)

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